É editora e mulher de armas, ainda que, em guerra, prefira balas argumentativas. Carrega há um par de anos a bandeira da Planeta, mas, ao jeito de Rubem Fonseca, declara a língua portuguesa como sua verdadeira terra. Considera o novo Acordo uma simplificação feita à martelada. Admite a constante necessidade de renovação dia após dia. E apresenta-se uma sempre nova Ana Pereirinha, sem temores ou hipocrisias. Bem dizia Stephen King que «escrever é humano, editar é divino».
Está capaz de pôr um cinto de bombas e rebentar com o Acordo Ortográfico?
O desacordo é tão fraco e falho de tino, que não são precisas medidas drásticas de autoimolação: bastam duas ou três balas argumentativas, razões de chumbo miúdo contra a ausência total de razões: pum, pum, estás morto!
Acredita que a Planeta um dia ainda vai ganhar um prémio de edição?
A Planeta já tem muitos prémios nas salas dos troféus, em várias latitudes e longitudes.Todos os prémios, como é sabido, dependem muito dos satélites e dos asteroides que gravitam os vários sistemas. Não tenho dúvida de que num ponto ou noutro do planeta os prémios de edição estão sempre chovendo — menos do que os exemplares vendidos, espera-se, que por aí não tem havido seca.
A Ana Pereirinha é a nova Maria do Rosário Pedreira?
A ser uma, a Ana Pereirinha será a velha Maria do Rosário Pedreira, e não só pela associação aos novos-já-a-caminho-de-excelentes-velhos «meninos». Não há energia quotidiana disponível no mundo para mais de uma Maria do Rosário Pedreira, fazendo excelentemente tudo o que ela faz todos os dias. Nem é preciso ter tido a sorte de trabalhar — e aprender — com ela tantos anos (de 1997 a 2009) para saber isso. No entanto, e já tendo trabalho demais a tentar ser uma nova ela-própria todos os dias, aAna Pereirinha orgulha-se de apresentar em breve ao mundo e ao futuro da Literatura Portuguesa o autor que teria ganhado o prémio Saramago em 1840, caso o prémio não fosse demasiado novo: Guilherme Centazzi, o pioneiro do romance português, que aos 32 anos escreveu aquele que viria também a ser o primeiro romance português traduzido para alemão, pouquíssimo tempo depois da sua publicação! (Vénia dupla, ou tripla, ao Pedro Almeida Vieira, que desenterrou este pioneiro O Estudante de Coimbrapara a posteridade e que está neste momento a averiguar se o Centazzi terá sido convidado da Feira do Livro de Frankfurt por aqueles anos, para os direitos terem sido tão rapidamente transacionados…).
Nós não somos a Grécia, mas a edição está a ver-se grega?
A edição está a ver-se grega, como todo o país está a ver-se grego, e o mundo deveria ver-se grego, mas infelizmente está cego para a barbárie derradeira que o assola.Portugal é a Grécia, e nós somos gregos, e latinos, e árabes, antes de sermos ricos ou pobres. Que não tenhamos funda consciência disso, é a principal crise que nos assola, intra e extraeditorialmente (vide, por exemplo, a resposta à pergunta 1). Se só a edição estivesse a ver-se grega, quão fácil não seria transformarmo-nos a todos em homens e mulheres-livros, como no Farenheit 451, salvarmos as bibliotecas e os livros que nos interessam verdadeiramente, voltando à velha tradição agrícola e às courelas que os nossos avós nos deixaram pelo país fora e estão ao abandono… (OK, OK, Maria do Rosário, no teu caso está combinado que é olaria, não me esqueci). Tramado, tramado mesmo, é que TODOS estamos a ver-nos gregos e sem caminhos para sair da situação:graecum est, non legitur.
Qual a situação mais delicada por que passou enquanto editora?
Ter tido salários em atraso e receber todos os dias reclamações por pagamentos devidos. Não sou caso único, nem eu nem a edição, infelizmente.
O que devem os editores saber rapidamente sob pena de desaparecerem?
Que todo o mundo muda mais rapidamente do que eles, que o mundo da edição não é exceção, e que não lhes adianta tentar correr cada vez mais depressa. Por mim, depois dos e-readers, da edição eletrónica e etc., na tentativa referida acima de ser uma nova Ana Pereirinha todos os dias, tenciono ir fazer um curso à Oficina do Cego para aprender os velhos mesteres do livro, saber pôr «a mão na massa».
Que palavra já não consegue ouvir?
«Alavancagem.»
Qual o seu maior ódio de estimação?
Os ódios de estimação vão variando, porque não sou pessoa de guardar ódios. Mas diria que, neste momento, a alavancagem está na ribalta, como atitude, e pensada não como mero conceito «novilinguístico» da selvajaria económica, mas aplicável a toda a atividade e atitude humana: na economia, nas políticas, no trato, etc.
Se pudesse fazer uma pergunta ao atual secretário de Estado da Cultura, qual seria?
Voltaria a aceitar ser secretário de Estado da Cultura?
Na atual conjuntura, como fazemos para que a língua portuguesa valha mais do que a PT, como apontou o ex-ministro da Cultura Pinto Ribeiro?
Eis a pergunta-tipo que remete para o meu ódio de estimação atual. Quanto a mim, é tão fácil e tão difícil como fazer as pessoas com cargos de decisão, e especialmente com cargos de decisão ao nível da Cultura, valerem mais do que as que têm ocupado os cargos ultimamente.
Que pensa do novo Acordo Ortográfico?
Sou contra, como tem sido público e tenho afirmado sempre que posso. Não serve a língua, não serve a liberdade de pensamento ao cortar as raízes com a memória da língua. A simplificação sempre foi a mãe de todos os totalitarismos, mas uma simplificação feita à martelada, então, é sem comentários. Este «Acordo» não serve rigorosamente ninguém, a não ser alguns interesses políticos e económicos localizados e a falta de ideias para a área da Cultura, onde, aí sim, faz, e fez, muita falta para mostrar serviço. A riqueza da Língua Portuguesa no mundo está na sua diversidade, e é uma riqueza inalienável. Em contraste com um Acordo que não tem lógica nem rigor e que já ninguém quer mas onde o poder político não recua para salvar uma face que não tem, de resto, salvação possível. Fico feliz da vida, a rebentar de orgulho, quando ouço o Rubem Fonseca dizer «nós, portugueses», quando leio que o meu grande, magnífico, Caetano esclarece os poucos resistentes da «modernidade» (versus os botas de elástico...), que, na sua canção «quero roçar a minha língua na língua de Camões» equivale a «o Acordo Ortográfico é uma maluquice», ou quando o Jornal de Angolapublica um editorial em defesa do português etimológico. Não direi a minha pátria, mas a minha terra, o meu húmus, é a língua portuguesa, sim, senhores: sou brasileira, sou angolana, sou moçambicana, sou timorense — com um orgulho imenso e um entendimento pleno. Não tenho o português «bom» — cresci a ler quadrinhos brasileiros, como toda a minha geração, e a aprender muitas coisas novas e expressões diferentes com isso. Entendi e entendo o português do mundo: estou-me nas tintas se os estrangeiros o aprendem com sotaque brasileiro ou português, é-me rigorosamente igual. Vivo no mais antigo e mais pobre país onde se fala português? Não estou em bicos de pés. E entendo que as minhas raízes são gregas, latinas e árabes. Lá está, somos todos «gregos» e andamos a ver-nos gregos por disparates sem fim, com este desacordo sem tom nem som.
Dê-nos uma boa ideia para o setor editorial português.
Tomar, por exemplo, uma atitude firme relativamente a este desacordo flutuante.Aproveitar a crise para fazer livros escolares mais baratos, acessíveis às famílias dos futuros leitores. Massa cinzenta, precisa-se muito a curto, médio e longo prazo.
Que pergunta não fizemos e deveríamos ter feito?
Se não fosse editora, o que quereria ser?
(in BLOGTAILORS, 22 Março 2012)